A peça “Parem de falar mal da rotina”, estrelado pela multitalentosa Elisa Lucinda, a Marlene da novela “Vai na Fé”, está celebrando 21 anos de sucesso. E é um fenômeno, afinal, não se tem notícia, pelo menos no Brasil, de outro monólogo criado e protagonizado por uma mulher negra que tenha arrastado milhões de espectadores pelo país inteiro e fora dele por tanto tempo. A montagem, com produção local da Ratimbum Produções de Artes, será apresentada no Teatro Universitário, em Vitória, entre os dias 25 e 27 de agosto.
Na peça, dirigida por Geovana Pires, a atriz e autora trata o cotidiano como espaço de estreia e criatividade e não como uma repetição. Para tanto, desfila sua poesia e suas encantadoras histórias cênicas para revelar ao espectador os nossos óbvios, onde o público se vê. O resultado são pouco mais de duas horas de elogios à rotina entre personagens diversos, nos levando ao espelho da auto-observação de nossa dramaturgia diária.
A chave, da qual parte a autora, é simples, porém fundamental: a rotina é feita de um conjunto de escolhas. Toda geografia de nossos atos cotidianos é desenhada por nossos desejos e decisões diante das opções, portanto, nós somos os responsáveis pelo que chamaremos de rotina e ninguém é culpado deste desenho. Só nós mesmos. Depois de nos levar a rir de nós mesmos e a chorar emocionadamente, a sequência de cenas nos leva a crer no poder que temos, cada um, de atuar nessa rotina, de modo a otimizá-la, melhorá-la, trazê-la pra mais perto dos nossos sonhos. Em verdade, nós temos o poder da mudança, nós somos os diretores, atores, autores, roteiristas e produtores das nossas próprias vidas.
Embora tentemos controlar o futuro, na verdade caminhamos todos os dias para o inédito e se caminhamos para o inédito, torna-se impossível, ou no mínimo, incoerente querer repetir o ontem. De forma interativa, a montagem propõe uma divertida reflexão do cotidiano. Utilizando versos e conversas despojadas sobre a rotina, a montagem é uma espécie de espelho capaz de projetar mil possibilidades provocando verdadeiras transformações em nossas relações sociais, profissionais e pessoais. “A peça nasceu das inúmeras lições que a natureza nos ensina todo dia. A grande lição é a capacidade de estreia que faz tudo na natureza acontecer de forma espetacular di-a-ri-a-men-te: o nascer do sol, o pôr do mesmo sol, o céu, a chuva, as estrelas, os ventos e as tardes. A natureza ensina a toda gente, mas, às vezes, alunos distraídos que somos, não vemos o lindo óbvio que ela nos oferece e as dicas que ela pode nos dar na condução de nossa vida diária”, diz a atriz Elisa Lucinda.
Junto com a Geovana Pires, Elisa Lucinda criou a Companhia da Outra, que assina o espetáculo. A linguagem desenvolvida nessa obra “engana” o público, pois, seu arcabouço de condução coloquial leva o espectador a achar que tudo é improviso ali, mas com as surpresas cênicas e algumas repetições de cena, acaba-se concluindo que tudo ali é marcado, ensaiado e pensado antes, ainda que muitos improvisos aconteçam realmente, fruto da interação com a plateia que o espetáculo propõe.
Deselitizando a poesia, Elisa fala o texto poético como quem conversa com o público, emociona e diverte com suas palavras gente de zero a cem anos, de todo o tipo e lugar. A experiência assemelha-se a uma espécie de autoajuda inteligente, uma aula de cidadania através da educação emocional, pois cuidando melhor de nossa rotina, autores e protagonistas que somos dela, cuidaremos melhor de nós mesmos, dos que nos cercam e do mundo à nossa volta.
O espetáculo abraça plateias e admiradores no Brasil e no exterior, com sucesso de público e crítica. Foi apresentado em diversos estados, cidades e países, como Rio de Janeiro, Porto Alegre, Amazonas e São Paulo, além da Holanda, Espanha, Portugal, Moçambique e Cabo Verde.
A cerimônia de repeti-lo todos os dias especializou sua criadora na arte de estreá-lo diariamente. A escolha dessa linguagem de roteiro aparentemente imprevisível para quem vê, produziu um outro fenômeno que é a repetição do público. Ao final, Lucinda pergunta quantas pessoas já viram a peça e, geralmente, a resposta positiva vem de 30 a 40% do público.
Talvez o público não espere nunca que essa peça pare, pois está sempre disposto a estar presente nas próximas temporadas lotando os teatros, fazendo confusão de acesso de pessoas na porta. Como o espetáculo já está atingindo sua maior idade, não é incomum que apareçam espectadores que foram acompanhados dos pais dentro da barriga, ou bebês ainda, e que hoje, adultos, voltam com esses pais e trazem novos amigos. De alguma maneira, a receita dessa obra leva uma comunicação transversal a toda a população brasileira e, por que não, mundial. Afinal, falar mal da rotina é um mau hábito da nossa civilização que ainda não entendeu que pode, como a lua e como o sol, estrear seus acontecimentos todo dia.
Depois de cada sessão a atriz autografa seus livros que estão sempre à venda no foyer dos teatros.