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ARTIGO – Moda circular e o desafio de sustentar escolhas conscientes

Consumimos todos os recursos naturais disponíveis para o ano de 2025 antes mesmo de chegar ao segundo semestre. O chamado “Dia da Sobrecarga da Terra”, calculado anualmente pela Global Footprint Network, representa o momento em que a humanidade começa a viver “no crédito ecológico”,  extraindo assim mais do que a Terra poderia recuperar. E a indústria da moda, uma das mais poluentes e vorazes em recursos, ocupa lugar central nesse colapso anunciado.

Em tempos de produção acelerada, em que o mercado da  moda obedece às demandas, resíduos são gerados descontroladamente. Dessa forma, práticas de redução do consumo, reutilização e reciclagem surgem como estratégias urgentes para mitigar os impactos ambientais e sociais desse setor. Segundo relatório da McKinsey & Company, a produção global de vestuário mais do que dobrou desde o ano 2000, ultrapassando a marca de 100 bilhões de peças por ano já em 2014. No mesmo período, de acordo com a organização Fashion Revolution, o consumidor médio passou a comprar cerca de 60% mais roupas, mantendo cada peça por apenas metade do tempo. Essa lógica de consumo acelerado alimenta um sistema que esgota recursos naturais, intensifica emissões de carbono e gera desigualdade social, especialmente nos países onde a mão de obra, majoritariamente feminina, é explorada em condições precárias.. Esse modelo de consumo desenfreado alimenta um sistema que esgota recursos naturais, emite gases de efeito estufa e gera desigualdade social.

Mulheres, nesse contexto, ocupam um lugar paradoxal. Por um lado, são socialmente programadas para consumir mais: desde cedo, a feminilidade é associada à aparência, à renovação constante do guarda-roupa e ao desejo de novidade. O marketing da moda reforça esses padrões, criando uma cultura onde repetir roupa é tabu e o “autocuidado” é frequentemente confundido com aquisição. Por outro lado, são também as mulheres que mais aderem, criam e lideram práticas sustentáveis ligadas à moda: compram em brechós, trocam peças entre si, reformam, costuram, bordam, reciclam e ensinam outras pessoas a fazerem o mesmo. Essa contradição revela que, embora pressionadas a consumir, as mulheres também estão entre as maiores forças de resistência ao consumo desenfreado.

A moda circular propõe uma ruptura com a lógica linear do “extrair, produzir e descartar”. Ela se estrutura sobre quatro pilares: reduzir, reutilizar, reciclar e repensar. Reduzir é consumir menos, com mais consciência e durabilidade. Reutilizar é dar novos usos a peças já existentes , seja trocando, reformando ou revendendo. Reciclar envolve transformar resíduos têxteis e outros subprodutos da moda em novos produtos. E repensar envolve um novo olhar para a moda como parte de um sistema vivo onde o tempo, o trabalho e os recursos naturais devem  ser respeitados.

No Brasil, há diversos exemplos de mulheres liderando iniciativas de reaproveitamento criativo. De cooperativas de costureiras que utilizam sobras da indústria a coletivos que produzem biojoias com resíduos vegetais, passando por feiras de brechó e ateliês de upcycling. Essas ações conectam sustentabilidade ambiental com autonomia econômica, especialmente em contextos periféricos, onde a criatividade feminina muitas vezes é uma forma de resistência social. No entanto, é preciso cuidado para que a responsabilidade pela mudança não recaia exclusivamente sobre o comportamento individual das mulheres, como se elas devessem corrigir os excessos de um sistema que continua promovendo o hiperconsumo.

Afastar-se do modelo da moda descartável exige também rever os papéis sociais atribuídos ao consumo. A cultura do “comprar para ser” afeta mais fortemente as mulheres porque opera sobre a base de inseguranças construídas  e mantidas por um mercado que lucra ao nos dizer que sempre falta algo. Romper com essa lógica é um desafio coletivo e cultural. Por isso, mais do que uma mudança de hábitos, a moda circular é uma mudança de paradigma.

No centro desse movimento, não está a negação da beleza, da expressão ou do estilo. Pelo contrário: está o desejo de resgatar o verdadeiro sentido do vestir. Um vestir que cuida, que respeita, que dura. E que transforma cada roupa reaproveitada em um pequeno gesto de transformação do planeta.

Repensar a moda é também repensar a forma como lidamos com nossos desejos, nossas inseguranças e os padrões que nos atravessam. Quando uma mulher escolhe consumir menos, reaproveitar o que já tem ou recusar as imposições do “sempre novo”, ela não está apenas fazendo uma escolha individual: está questionando um sistema global que lucra com a insatisfação e a descartabilidade:  dos corpos, das roupas, das vidas.

Ações locais, como customizar  uma peça herdada, trocar roupas em uma rede de afeto ou comprar de uma artesã do seu bairro, ou uma marca slow fashion possuem impactos que se desdobram para além das fronteiras do guarda-roupa. Contribuem para reduzir emissões, combater a exploração de trabalho precarizado e fortalecer economias circulares e solidárias. O empoderamento feminino, nesse contexto, não está em aderir às promessas da vitrine, mas em desprogramar as lógicas que associam valor pessoal à aparência ou acúmulo. Trata-se de uma reconexão com o tempo, com a criatividade e com o poder de decidir por si, não como imposição, mas como gesto coletivo, sensível e transformador. O que se veste, afinal, também pode ser uma forma de reexistir.

 

Alice Carvalho é Bióloga 

 

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