Artigo

ARTIGO – Incitatus vive

Tenho natural reserva em falar na primeira pessoa do singular. Não vejo, porém, forma outra de contextualizar o que pretendo expor. Assim, humildemente, peço licença para violar esta regra.

No início de 1979, quando contava uns 13 anos de idade, recebi de meu saudoso pai um computador Sharp modelo PC-1211, adquirido no Japão. Tinha espantosos 2K de memória RAM. Poucos no Ocidente, que dizer no Brasil, conheciam esta novidade.

Com o equipamento veio um guia de programação contendo 301 páginas, que traduzi e ainda conservo. Foi assim que comecei, em poucas semanas, a escrever programas – uma de minhas paixões. Comecei e não mais parei.

Nos idos de 1998 redigi um dos primeiros aplicativos do mundo capaz de emitir sentenças judiciais completas. Sobre ele palestrei nos EUA, no Reino Unido e na Suécia. Em 1999 este “software” proporcionou-me a honra de abrir uma conferência mundial sobre Inteligência Artificial e Direito, realizada na Austrália. Ao retornar apresentei-o no saudoso “Programa do Jô”. Emitimos “ao vivo” uma sentença completa acerca de um acidente de trânsito.

Mas retorno à Austrália. Naquele evento, realizado há mais de um quarto de século, algumas certezas despontaram. A primeira e mais importante delas: não há a menor possibilidade de algoritmos “burros” serem “inteligentes”.

Pregou-se a cautela e a humildade. Não estávamos a “treinar” sistemas de “inteligência artificial” – meramente calibrávamos, e de forma opaca, algoritmos absolutamente “burros”. Foi consenso que a expressão “inteligência artificial” deveria ser evitada, dado sugerir – e de forma perigosa – ser real algo que não existe.

Recorrerei a um exemplo prosaico, grosseiro até. Imaginemos uma expressão matemática simples, com apenas duas variáveis, “A” e “B”, as quais, somadas, deverão resultar no número quatro.

A bordo de um computador dado algoritmo tentará atribuir a “A” e a “B” valores que tornem a expressão verdadeira, ou seja, “4=4”. Em uma primeira tentativa, fracassada, a “A” atribuiu-se o valor de 9, e a “B” o de 8. Erro! E assim o algoritmo irá alterando os valores de “A” e de “B” até que a expressão matemática fique correta.

Houve aí algum “aprendizado”? Algum “treinamento”? Há neste algoritmo o mais leve vestígio de inteligência? Não. Evidentemente, não. Apenas houve o calibrar opaco de um algoritmo “burro” – só isso e nada mais do que isso.

Explico o termo “opaco”: ao final nem o autor do algoritmo saberá quais valores foram atribuídos a “A” e a “B” – se 2 e 2, se 4 e 0 ou se 1 e 3.

Mudemos, agora, a escala. Imaginemos não duas variáveis – “A” e “B” – mas incríveis 540 bilhões delas sendo calibradas ao longo de todo um semestre a bordo dos computadores mais poderosos do mundo. Eis aí, de forma rasa, o que hoje chamamos, ingenuamente, de “inteligência artificial”.

O princípio é o mesmo. Vale, seja para duas ou para 540 bilhões de variáveis, a mesma verdade: não “treinamos” sistema algum. Não houve qualquer “aprendizado”. Não há aí sequer vestígio de inteligência. Apenas calibramos, ao fim do cabo, um algoritmo “burro”.

Registro que esta tecnologia pode ser útil ao extremo. É excepcionalmente boa para reconhecer padrões, relacionar dados e indicar conclusões em temas de natureza lógica. Proporcionará maravilhas à raça humana. Mas sempre sob um alerta: não é mais inteligente que um martelo!

Este sério aviso é fundamental quando começamos a percorrer os caminhos tortuosos da ciência jurídica. Há que se ter, aqui, prudência excepcional. Há que se limitar o uso desses algoritmos ao realizar de tarefas mecânicas e em casos nos quais absoluta a participação humana no processo de decisão – aí eles serão úteis ao extremo.

Mas não tem sido assim. Vejo, com horror, a aurora de três “bestas do Apocalipse Jurídico”, que aqui chamaremos Erro, Desinformação e Cegueira.

Começo pela primeira delas, de nome “Erro”. Pelo planeta afora algoritmos “burros” já estão a decidir se seres humanos tem ou não direito a fiança. Qual pena lhes é a adequada. Se seus pedidos e recursos devem ou não prosperar. E por aí temos seguido. Ao fundo, relinchando de gozo, a besta a celebrar!

Em nenhum desses casos há um ser humano a inserir dados após a análise de um processo. Não! Que seja um algoritmo “burro” a examinar alguns arquivos e a firmar, de forma opaca, um veredito. A participação humana é ínfima. Resume-se a ler o texto final – quase sempre convincente – e aprová-lo, ressalvada a exceção de algum erro grosseiro demais.

E as partes prejudicadas indevidamente? Ora, as partes…

Galopando pela riba acima comparece a segunda besta, Desinformação. Seja seu símbolo um caríssimo sistema implementado no Reino Unido, destinado a fiscalizar dado setor da administração pública. Não é um sistema qualquer: foi concebido por uma das maiores empresas de tecnologia do planeta e anunciado como detentor da mais avançada “inteligência artificial”.

Ao longo de anos este sistema emitiu relatórios indicando, sempre de forma segura e convincente, episódios de corrupção. Esses documentos, provenientes de fonte tão confiável, foram aceitos como verdade absoluta pela “justiça dos homens”. Convenhamos, não poderia ser diferente: qual juiz, acusador ou policial estaria disposto a mergulhar nos milhares de elementos coletados e relacionados? E que estivesse: como fazê-lo?

Seguiram-se, pelo país afora, os processos e as prisões. As humilhações. Os suicídios de alguns inconformados. E eis que há não muito tempo um dos acusados, após penoso processo, finalmente conseguiu comprovar que o sistema era falho – não era “inteligente”, afinal.

Abriu-se no Parlamento do Reino Unido uma investigação. Chamou-me a atenção a fala de um membro da Câmara dos Comuns, a indagar como seriam restauradas as honras destruídas, as famílias desfeitas e as vidas perdidas.

Enquanto isso seguimos firmes em nossa certeza ingênua de que vistosos relatórios produzidos por algoritmos “burros” são a expressão da verdade. Com base neles já definimos – por vezes de forma definitiva – a vida de semelhantes nossos, dentro e fora do sistema judiciário. Ao fundo, a relinchar loucamente, a besta da Desinformação, debochando de nossa sapiência.

Descortina-se, finalmente, no horizonte, a terceira besta do Apocalipse Jurídico, que atende pelo nome de Cegueira. Como juiz, é a que mais angústia me causa.

Nosso sistema processual, belíssimo e complexo a ponto de inspirar bibliotecas inteiras, simplesmente não funciona – e não funcionará jamais. É claramente incompatível com as necessidades do momento histórico.

Falo de um Leviatã que prejudica decisivamente o desenvolvimento humano e econômico do nosso país.

Temos orgulho de dizer que nossos juízes estão entre os que mais decidem no mundo.  Anunciamos, com arroubos de grandeza, que emitimos a cada ano milhões de decisões. Deveríamos ter vergonha. Muita vergonha. É impossível que se decida de forma consciente um tal número de processos.

Após mais de quatro décadas de caminhada pelos corredores dos pretórios, e na condição de decano de um Tribunal de Justiça, confesso minha desilusão. Participo hoje, angustiado, de uma “justiça por atacado”, rasa e perigosa.

Sob o sistema atual, porém, não há alternativa – salvo a do linchamento moral. O jeito é seguir em frente, julgando meus semelhantes do jeito que der. Que eu erre pouco, meu Deus!

Dizem alguns que o problema é a falta de juízes e servidores. Ingenuidade ou má-fé, falar isso. Simplesmente não há como ampliarmos tanto os nossos quadros. Ademais, como concluiu o Centro de Estudos de Justiça das Américas após um longo estudo a respeito realizado no Chile, “mais da mesma coisa não adianta”.

Deveríamos, em verdade, ir às origens do problema. Discutir, sem hipocrisia, o que deve e o que não deve ir ao sistema judiciário. Debater a experiência histórica denominada “juiz singular”, que deu errado e já deveria ter dado espaço a colegiados funcionando sob ritos mais lógicos e simplificados. Estudar a sério o fim de uma burocracia que seria cômica se não fosse trágica. Buscar aplicar mais extensamente o princípio da oralidade. Procurar julgar mais o criminoso que o crime. Alcançar maior criatividade na fixação das penas. Acabar com os “cercadinhos” das jurisdições, competências, atribuições etc., que tanto atraso nos causam diante de um mundo já globalizado. Eliminar os formalismos incompatíveis com este milênio, alguns deles ridículos. Reconhecer que algumas presunções legais já não se sustentam diante da realidade. Suprimir o retrabalho. Interagir de forma eficiente com outras instituições. Rever leis belas, porém claramente inadequadas para nossa triste realidade.

Por que não colocarmos a sociedade ao nosso lado na mesa de trabalho, decidindo conosco e temperando os julgamentos com o grão de sal de outros pontos de vista? Até que ponto temos sido verdadeiramente juízes, e não revisores do trabalho de assessores? O pior: a caminho de meramente subscrevermos o que algoritmos “burros” disserem ser “justiça”.

Perplexos, bons magistrados começam a encontrar o desestímulo. Já lhes atormenta o espírito deverem ser “máquinas de julgar” a caminho de serem “ajudantes de máquinas de julgar”. É assim que estamos desperdiçando a mais preparada geração de juízes da história. A mais preparada! A melhor!

Quase não nos dedicamos mais ao estudo das questões de fundo – nossa rotina passou a ser a de enfrentar as questões processuais, quase sempre minúcias ridículas diante da realidade do Brasil.

Este o debate exigido pelo momento histórico. Mas dele fugimos – e de forma medíocre. Preferimos passar os dias a virtualizar uma burocracia estúpida, como se modernidade isso fosse – e agora com a cumplicidade de alguns algoritmos “burros”, apresentados à patuleia como “a panacéia dos males” ou a “justiça do futuro”. Sem que o percebamos passamos a cortejar Incitatus – que ainda vive. Ele está no meio de nós, firme e atuante. Relincha gostosamente diante da rotina do absurdo dos rituais bolorentos e das minúcias ridículas que inserimos a bordo de modernos computadores.

Esta a obra da terceira besta do Apocalipse Jurídico: a cegueira! Não enxergamos o óbvio. Em fuga da realidade, não percebemos nossa falência e a extensão do fosso que já nos separa da sociedade e da economia. Alienados, começamos a chegar àquele estado de coisas descrito por Victor Hugo: “quem perde o valor perde tudo”. Tudo!

Ao fundo, a gargalhar, todos aqueles que lucram com a fraqueza do mundo das leis – o mal, em uma expressão.

A externar estas palavras não está um reacionário – antes, alguém que sacrificou o melhor de suas forças no processo de modernização do Poder Judiciário. Alguém que desde a infância abraçou a modernidade. Alguém que fez da luta contra o mofo seu ideal de vida – uma bandeira que não é de poucos. Vejo este entusiasmo em muitos que buscam novas tecnologias – querem melhorar este mundo, afinal.

Peço desculpas por ser repetitivo, mas não sou inimigo dos algoritmos “burros”. Já os concebi às dúzias, afinal. Eles podem ser de infinita utilidade. Mas nunca – nunca mesmo – devem receber a autonomia que lhes temos conferido no seio da humanidade.

A verdadeira evolução que o sistema legal precisa não é a dos algoritmos “burros” – é a da inteligência no trabalho, a da modernização da mentalidade e a da grandeza de espírito. A de tornar lógico nosso sistema processual. A de sermos verdadeiros juízes, trabalhando em conjunto com a sociedade, e não “máquinas de julgar”.

Repito: está errado, e muito errado, usar ferramentas tecnológicas tão fascinantes para prolongar o obscurantismo do mundo das leis e iludir populações inteiras. Para dizer, e de forma opaca, o que é justo.

Sim, está errado. Mas será o que veremos. Afinal, desinformadas, as pessoas estão fascinadas demais pelos encantos de Incitatus, digo, desta tal de “inteligência artificial”. Pouco ou nada questionarão. Aliás, arrisco dizer que pelos padrões da atualidade não seria sequer “politicamente correto” fazê-lo.

Assim, aos poucos passará a ser rotina que algoritmos “burros” – por vezes caríssimos – redijam de forma autônoma minutas de decisões. No início, sobre casos mais simples. Ao final, de todos. Nossos julgadores revisarão a cada dia menos essas minutas – ora, sempre parecem corretas.

Aliás, sequer tempo para revisá-las corretamente terão, pois há que se prestar homenagem aos indicadores de produtividade – mesmo porque a esta altura já estaremos tendo nosso desempenho fiscalizado por outros algoritmos “burros”. Sim, serão eles a dizer se somos ou não bons juízes!

Sejamos honestos: de todas essas minutas muito poucas serão conferidas de forma adequada, através de um confronto com os autos. A regra, reconheçamos, será a “assinatura em lote”.

Ao longo deste caminho serão apresentados à patuleia embasbacada números incríveis sobre o aumento do número de decisões. Levará tempo até a maioria de nós perceber o escárnio e compreender que existe uma séria diferença entre decidir processos, coisa que algoritmos “burros” conseguem, e solucionar problemas, algo sublime e exclusivamente humano.

Nossa ineficiência em resolver problemas diminui em 13,7% o total de investimentos, em 18,5% o volume de negócios celebrados e em 12,3% a oferta de empregos. Falo dos danos mensuráveis que o sistema judicial causa ao Brasil – imaginemos os imensuráveis, quais aqueles relacionados ao desenvolvimento humano.

É este, sem retoques, o quadro que começamos a prolongar com a ajuda de Incitatus, o “inteligente”. Seguiremos firmes nesta “nau dos insensatos” até chegarmos a um ponto de insustentabilidade. Neste momento recordaremos, com pesar, o sábio conselho de Benjamim Disraeli à rainha da Inglaterra: “Majestade, o povo está insatisfeito e clama por reformas. Se elas não forem feitas por nós serão feitas sem nós, e, o que é pior, contra nós”.

A quem reputar muito amargas tais palavras registro já discutir-se a sério, no Reino Unido, a privatização de todos os serviços judiciários – todos! Argumenta-se que haveria aumento de eficiência e redução de custos.

Há algumas décadas, horrorizado com o caminho trilhado pelo “mundo das leis”, um brilhante advogado italiano, Piero Calamandrei, nos alertava para um grave pecado que a ciência processual estava a cometer, qual o de estudar o processo como algo isolado da realidade e distante da justiça. Não o ouvimos e criamos um monstro.

Que nesta quadra tenhamos a sensibilidade, a lucidez e a responsabilidade de não prolongarmos sua existência. Que sejamos sábios no uso das maravilhosas ferramentas tecnológicas ao nosso dispor. Que nos toque o coração algum sentimento de grandeza e possamos perceber, com Disraeli, que a vida é curta demais para ser pequena. Ou talvez, com Molière,  exclamar divertidamente que “de todas é uma loucura sem par querer-se este mundo endireitar”.

 

Pedro Valls Feu Rosa é jornalista, escritor e desembargador no Espírito Santo

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